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Faltava-lhe o ar. Trajado em sua velha armadura de couro, não conseguia se esconder do sol. A triste vegetação mantinha suas poucas folhas estáticas. Vento não tinha. Sombra não tinha. Na garganta apenas a secura da sede e ardência provocada pelo capim seco da beira de onde seria o rio, se lá houvesse água. Na algibeira apenas a esperança de encontrar um cajueiro que fosse.
Ainda estava aturdido com as ofensas do cel. Altamirando por conta de uma rês magra que não encontrara junto com o gado. O velho o acusou de tê-la perdido ou até roubado. Não poderia voltar à Santa Inez enquanto não achasse a bendita. Sua esposa e dois filhos ficaram como reféns sob a mira de um capanga. “Eita cabra safado! Ainda fujo e sumo no mundo”- era só o que pensava. Não havia fugido antes pois o cel. o fazia assinar promissórias de dívidas oriundas do acerto de contas que ele, pobre vaqueiro, não conseguia acompanhar. Tinha sempre a impressão de que estava sendo enganado - “o tal de juro é coisa do diabo”. Ser cria da fazenda, ter devotado a infância ao trabalho na Santa Inez, ser, a bem-dizer, mais um utensílio da fazenda valiam de nada naquelas horas? Já se achava no desespero. Não sabia para onde ir. Talvez já tivesse percorrido as fazendas vizinhas -“Se o dêmo em forma de gente pelo menos me deixasse vir a cavalo.” Talvez não tivesse mais aonde procurar. Andou cambaleante e mais a frente avistou uma sombra. Firmou os olhos e viu se tratar de uma parede de barro. Talvez tenha sido um dia uma vivenda, quiça um lar, mas hoje era só uma parede esburacada que oferecia sombra, sossego para depositar lamentações. A exaustão o fez cair tão logo chegou à área sombreada e, de bruços, tombou em sono profundo.
Foi acordado, já a noitinha, por um bando de jagunços. Em seu íntimo entregou-se a Deus. Pediu sobretudo pela família que morreria se não retornasse até o anoitecer. Noite já era. Temeu pelo pior. Espantou-lhe a forma serena com que o chefe do bando indagou por sua história. Ao contá-la, chorou.
- Diga seu vaqueiro, esta Santa Inez tem muito cabra armado?
- Tem não, senhor. O coroné acha que tá longe do barulho e mandou o grosso dos capanga se alistar nas tropa do governo.
- Pois então tá resolvido. Vamo buscá tua família. Se o amigo quiser podemo te levá, mais a família, para um lugar que mequetrefe nenhum vai lhe fazer covardia e vosmicês vão poder viver na paz de nosso Bom Pastor.
Foram pela caatinga explicando mais da terra prometida ao vaqueiro. O bando sabia bem onde estavam, pois não demorou muito para chegarem à Santa Inez. Com a ajuda do vaqueiro, os jagunços esgueiraram-se pelos galpões e com poucos tiros liquidaram os capangas, libertando os cativos. Amarraram o cel. que não morreu a pedido do vaqueiro. Queria que “o coisa ruim” vivesse com aquela humilhação. Queimou as promissórias. Libertou-se. Juntou-se aos jagunços para pegar o quanto podiam. Sabia que não eram ladrões, mas missionários da causa do Bom Pastor. Já montado no tordilho do ex-patrão, esporeia com prazer o animal como se este fosse o dono, rodeia, levanta poeira e como se estivesse às margens do Ipiranga, brada com todos os pulmões:
- Adeus coroné! Tô livre! Vou pra onde sou respeitado, onde o Bom Pastor opera milagre! Viva Antônio Conselheiro!
Sem olhar para trás, partiu com a família para viver na cidade que se formava, ao encontro do destino trágico que a vida lhe anunciara logo ao nascer. Partiu convencido de que daria sua vida por esta cidade se preciso fosse. Mas aí, já não era sina. Era escolha.
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