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Inscrição na Biblioteca - crônica

event_note06/10/2016 23:14h
Aquele deve ter sido o único dia em que sua mãe não teve que chamá-lo para tomar banho na hora de ir para a escola. Normalmente ele ficava brincando no terreiro, vivendo suas aventuras imaginadas, falando baixo para não despertar a atenção do tio, que achava o cúmulo ele viver falando sozinho com uma capa de pano velho no pescoço ou com varinhas na mão imitando espadas. Ele era o único menino e o mais velho entre a irmã e as primas. Iam todos juntos, caminhando do sítio onde moravam para a vila onde ficava a escola, o campo de futebol, a praça e a biblioteca. Todas aos cuidados dele. A irmã e as primas se aprontavam e ficavam esperando que ele se arrumasse para saírem. Era sempre o último a ficar pronto. Não naquele dia. Mal acordou, perguntou para a mãe a que horas deveria sair.
– No mesmo horário! – disse ela, já cansada de responder a mesma coisa várias vezes no dia anterior. – Para fazer a carteirinha da biblioteca é só deixar os documentos e pegar no dia seguinte.
Era isso. Ele iria fazer a carteirinha da biblioteca naquele dia. Conferiu os documentos dezenas de vezes: certidão de nascimento e uma foto 3x4. Já tinha superado o sorriso banguela e o cabelo desgrenhado da foto. Era a única que tinha e precisava fazer a carteirinha. Todos os dias passava em frente à biblioteca municipal, que ficava perto da escola. Depois que aprendera a ler no ano anterior, logo no primeiro dia de aula, a nova professora disse que era necessário fazer a inscrição na biblioteca, pois ela passaria como tarefa a leitura de um livrinho ainda aquele ano. Ele havia se deslumbrado com a escola. Encantou-se com a matemática da formação das sílabas – bê-á, bá; bê-é, bé – e, em nova combinação, as sílabas formando as palavras: babá, caco, dedo, faca, gado, e assim aprendia a matemática das palavras. Agora, algo novo. Um livro. Iria ler um livro! Isso despertou nele algo diferente. Mexia com o seu coração infantil. Achou a tarefa grandiosa. Coisa de gente grande... Ler um livro. Antes, porém, precisava da inscrição na biblioteca. Precisava pegar a carteirinha. O passaporte para o mundo das palavras. Perturbou a mãe para juntar os documentos requeridos. Naquele dia iria entrar para o hall das pessoas que tinham a carteirinha de biblioteca.
Daí o estado de ansiedade em que se encontrava naquela manhã. O tempo, que costumava ser curto para viver suas aventuras, naquele dia demorava a passar. A imaginação não fluía para nenhuma brincadeira. Imaginava, sim, o diálogo com a bibliotecária.
– Boa tarde, Dona Gertrudes. Eu vim fazer a carteirinha.
– Olá, rapazinho, bem-vindo. Agora você pode pegar quantos livros quiser.
Repassava o diálogo. Temia que houvesse algum impedimento, que a fala de Dona Gertrudes fosse outra e que não pudesse se inscrever. A mãe lhe dizia que era só entregar os documentos, mas ele não acreditava. Um ato tão solene não haveria de ser tão simples. Deveria ser algo mais formal. Afinal, havia uma máquina de escrever na biblioteca! E nessa agonia tentava apressar o tempo. Quando perguntou novamente à mãe se já era hora do banho, a mãe, já sem aguentar a insistência, consentiu com um gesto vencido. Ele correu para o banheiro, tomou o banho depressa, vestiu o uniforme, penteou o cabelo sozinho, pegou a mochila, os documentos da inscrição depois de conferi-los uma vez mais e partiu para a vila. Foi num caminhar apressado, quase uma marcha olímpica. Sua concentração na missão era tão grande que não sentiu medo de topar com cobras na estrada, como em geral acontecia. Ia repassando o diálogo com Dona Gertrudes. Quando deu por si, estava na porta da biblioteca.
Dono Gertrudes o olhou com a certidão de nascimento e retrato na mão e não lhe deu a chance de dizer a frase ensaiada durante toda a manhã:
– Olá, rapazinho. Já sei, quer fazer a inscrição, não é? Deixe comigo os documentos e pode passar amanhã neste mesmo horário para pegá-la.
Ele apenas balançou a cabeça concordando, deixou os papéis e saiu. Ainda faltava muito para a hora da entrada. Foi para o ponto da praça em frente à escola onde sempre esperava a sineta tocar. Estava um pouco aéreo. Além de certo desapontamento com a informalidade do ato tão ansiosamente esperado, sentia falta de algo. Olhou à volta e um arrepio frio percorreu-lhe a espinha. O rosto corou, o coração acelerou. Onde estavam a irmã e as primas? Na pressa para fazer a inscrição na biblioteca esqueceu-se das pequenas, veio sozinho e as deixou para trás. Não pensou duas vezes. Saiu correndo para buscá-las, agora, sim, pensando nas cobras que poderia encontrar pelo caminho. Desesperou-se. Sentia-se culpado. Foi encontrar-se com elas já na chegada da vila. Sorriu aliviado por elas estarem bem, porém as meninas o olharam com cara feia e nada disseram. Combinaram entre si que ficariam “de mal” com ele para sempre. Como pudera esquecê-las? Foram para a escola. No fim da aula ele as esperou, desculpou-se e passou a viagem de volta inteira tentando fazer as pazes, que só foi possível no dia seguinte, quando foram brincar. A mãe deu-lhe uma bronca muito grande, mas também se riu por dentro constatando que o filho era mesmo muito avoado. No dia seguinte, apesar da ansiedade para pegar a carteirinha, ficou atento, esperando as meninas para que não fossem novamente sozinhas. Jamais as esqueceu novamente. Depois de alguns anos, elas ficaram moças e não queriam mais que ele as acompanhasse, mas ele não as deixava.
Enfim, ele pegou a carteirinha. Era o leitor de número 112. Com o passaporte à mão ele poderia, enfim, ler um livro. Leu aquele que a professora passou como tarefa. Não o viu como tarefa. Deliciou-se. Viajou em muitos outros livros. Fazia sempre uma parada na biblioteca antes da aula.
Pelo visto, uma biblioteca será sempre um lugar onde ele se sentirá bem. Sempre dará a ele a sensação de algo grandioso... Ler um livro. Sempre mexerá com seu coração infantil.
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