
O Prêmio Camões de 2019 foi dado ao compositor, cantor, dramaturgo e escritor, Chico Buarque de Holanda. Tal premiação reacende a discussão surgida quando do Prêmio Nobel de Literatura ter sido outorgado à Bob Dylan ...prêmios literários a cantores?
Temos que primeiro definir o Camões. Para tal, uso definição dada pela Biblioteca Nacional: “O Prêmio Camões de Literatura foi instituído em 1988 com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural de nossa língua comum”.(Sítio internet da BN – grifo meu)
Evidentemente, se olharmos os 31 vencedores do prêmio, a grande maioria é constituída de romancistas e poetas, trata-se de um prêmio literário, mas não só, pelo grifo que fiz na definição da BN. Se não, vejamos o premiado de 1996, o português Eduardo Lourenço que tem como áreas de atuação a filosofia, crítica literária, estudos literários e ensaio. Já o brasileiro Cândido Mendes, vencedor da honraria em 1998, teve sua atuação na crítica literária, estudos literários, ensaio e sociologia reconhecidos. Não produziram “literatura”, por assim dizer, mas possuem vasta literatura sobre... literatura. São contestados estes prêmios? Não por mim, devido ao meu “grifo” na definição dada pela BN.
Outra vertente é o teatro. Se olharmos a atuação dos 31 vencedores, encontramos nada menos do que 8 agraciados que tiveram envolvimento com dramaturgia. Neste aspecto, a obra de Chico está bem de acordo. As peças Roda viva e Calabar (li ambas!) são significativas do ponto de vista cultural. Gota d’água (também li) é um abrasileiramento de tragédia grega de Medeia. Contribuição cultural inquestionável à língua portuguesa. "A ópera do malandro" (assisti a uma montagem recente) é um deleite linguístico e cultural seja pelo texto afiado, seja pelas letras das...canções. Considerando o público infantil, a versão da peça “Os Saltimbancos” atravessou e atravessa gerações.
Vamos ver, então, a obra do escritor, a literatura literária, tecnicamente falando, os seus romances. São cinco. Li todos. Mas não darei minha opinião sobre eles. Olhemos o que a crítica falou sobre as obras. “Estorvo” (1992, romance de estreia) venceu o prestigioso Prêmio Jabuti. “Budapeste” (2003) recebeu o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura e o Jabuti. “Leite Derramado” (2009) venceu o Jabuti e o Prémio Casa de las Américas. Seu último romance, “O irmão alemão” (2014) recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte. "Benjamin"(1995), seu único romance não premiado, ganhou uma belíssima adaptação para o cinema, com atuação sublime do gigante ator Paulo José. Acrescente-se a isso a produção literária infanto-juvenil dos anos 70-80 (Fazenda Modelo, Chapeuzinho Amarelo e A bordo do Rui Barbosa, com ilustrações de Vallandro Keating), vai de encontro com a produção de vários outros agraciados com o Camões. Pelo exposto, não podemos dizer que a literatura “literária” do Chico é irrelevante ou insignificante. Seria, então, o conjunto da obra “pouco extenso”? Bem, se compararmos a “quantidade” de livros do último vencedor brasileiro do Camões, Raduam Nassar, cuja pujança literária esplendorosa está contida em “Lavoura Arcaica” e “Um copo de cólera”, Chico é um escritor prolífero (pelo amor de Deus, não estou a comparar “Lavoura arcaica” com “Leite derramado”, estou me referindo aqui, apenas, à quantidade de obras). José Saramago, Prêmio Camões e Nobel de Literatura, disse “ter acontecido algo novo” com o lançamento de “Budapeste”. Alguém imagina o Saramago fazendo média com uma celebridade artística? Pois é, eu também não.
Por tudo isso me recuso a aceitar o argumento de que Chico foi premiado “só” pela música. Mas há os que digam isso e até os que defendam. O jornalista João Máximo defende em artigo na coluna POP & ARTE que se “letra de canção não era literatura, passa a ser agora.” Particularmente discordo disso. Como já debati em outro artigo (Letra de música é poesia? – agosto de 2017), letra de música pode conter poesia, mas se trada de um gênero artístico diferente, nem melhor nem pior, diferente, com pessoas gostando mais de um do que outro. O dramaturgo Antônio Hohlfeldt, membro do júri do Camões deste ano escreve interessante artigo para o Jornal do Comércio (31/5/2019) que vale a pena ser lido. Ele reconhece que o uso da música para difusão de poesia foi algo que pesou no prêmio. Eu concordo que se alguém que nunca tenha ouvido as canções de Chico Buarque ler como poesia a letra de “Construção” verá o artífice da palavra (não é isso um poeta?), com uma criação precisa, apresentando rimas em proparoxítonas! Não terá dúvida de que lê um grande poeta. Por outro lado, o mesmo não ocorre com “Feijoada Completa”. Na sequência, ele defende a criação dramatúrgica de Chico, justificando o prêmio.
Seguramente o leitor deve estar a pensar se não havia no Brasil um escritor-escritor para ganhar o prêmio. Sim, sempre há controvérsias nas escolhas. Rachel de Queirós venceu em 1993 quando Jorge Amado (!) ainda não tinha vencido! Ele ganhou no ano seguinte. Os dois mereceram, e muito! Se me perguntar que outros autores brasileiros poderiam ter recebido a honraria, tenho alguns nomes. Vou citar dois. Cristóvão Tezza, romancista genial, premiadíssimo nacional e internacionalmente, autor de “O filho eterno”, ainda receberá o seu Camões. Se olharmos a abrangência da obra, como é observado em muitos outros ganhadores, com poesia, romance, obras acadêmicas, traduções, Marco Lucchesi também ainda receberá essa honraria.
Em suma, concordando que outros também mereceriam receber o prêmio, na minha opinião, Chico Buarque também o merecia e o Camões de 2019 está em boas mãos. Na lista de atuações dos vencedores até aqui (poetas, romancistas, contistas, dramaturgos, cronistas, ensaístas, críticos, jornalistas, etc) Chico inaugura a atuação em... música, dentre as atuações dos ganhadores do Prêmio Camões. Mas na lista dele não entra “só” a música, tendo, sim, uma obra literária consistente. Já passou da hora de acabarmos com o preconceito e reconhecermos Chico Buarque de Holanda como importante ESCRITOR brasileiro.
Entre muitas opiniões que li a respeito da premiação, concordei com uma de quem não me lembro o autor: o Nobel de Dylan cairia bem no colo de Chico (veja que só comparo a produção literária de Chico com a de Dylan!). Finalizo com o que escreveu Antônio Hohlfeldt, no já citado artigo: “Nós, do júri, consideramos que o prêmio Camões deve destacar quem é capaz de recriar a língua e redimensionar a cultura. Alguém tem dúvida que Chico Buarque fez exatamente isso e mereceu o prêmio?”
Eu não.