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O livro das nuvens, de Samuel Marinho

event_note05/10/2025 08:27
A poesia tem o dom de nos levar ao alto, de nos fazer voar através da linguagem. Ela carrega esse sortilégio de transportar pensamentos e de despertar sensações físicas. Ressoa com os sentimentos que nem julgávamos ter. A poesia, senhores, não passa inócua por nossas vistas.

O novo livro de poemas de Samuel Marinho, O livro das nuvens ( em belíssima edição da 7Letras), tem essa característica fundamental de nos levar às nuvens. Nuvens brancas de dias dourados, de “um azul descomunal” e também nuvens carregadas de tempestades que fazem dias cinzas. Dividido em duas partes, “blue” e “ponto de orvalho”, ele constrói pontes, nos ajuda a chegar a lugares do cotidiano que sua linguagem transforma em algo que se distancia do lugar comum. O poema de abertura indica que as “nuvens” podem ser também o lugar etéreo que guardar lembranças que podemos imprimir em papel de foto, pendurar em perfis. Uma semântica atual da palavra nuvem, uma coisa que contratamos como memória para guardar

“Uma self em um celular
De última geração
Ultrapassado”
Corpo estranho (pág.20)


Com a naturalidade que fala das tecnologias modernas condenadas a serem “ultrapassadas”, marca indelével de sua voz poética, o futuro chega nos dias presentes. Mas

“O passado será agora
O futuro já foi embora
O presente é
relativamente
aqui”.
Corpo estranho (pág.19)


A relatividade einsteiniana é evocada e tempo (“presente”) vira lugar (“aqui”). A vida parece uma viagem a velocidade relativística, pois

“não é de hoje
que por aqui
não se respira

é pressa
é pressa
é pressa”.
Faz sentido para você? (pág.31)


Com a ansiedade em que a vida se transformou, temos dificuldade para nos ouvirmos uns aos outros mas, principalmente, a nós mesmos. O poeta nos ensina:

“se falo comigo?
respondo e pergunto
a mim mesmo

Nada mais de estranhos oráculos!”
A fórmula do acaso (pág. 71)


A relação consigo e com o mundo é apresentada de maneiras, por vezes, viscerais. Mas a poesia aponta para uma “Cura” (pág. 113)

“foi quando
a minha própria presença
- essa sombra -
deixou de ser fantasma.”



Estudando a Teoria da Poesia Concreta da tríade concretista brasileira, aprendemos a natureza verbovocovissual do poema. A indissociabilidade sonora, verbal e visual faz do poema um gênero textual único, complexo, apesar da, por vezes, diminuta forma. Escrever um poema é muito mais complexo que escrever em versos, fazer rimar quadras, ou mesmo ser exato em redondilhas, conseguir encaixar as palavras na fórmula dos sonetos. Não estou a desmerecer a técnica que é muito importante para a poesia, mas defendo que só técnica não faz um poema que tenha poesia. Mas o fazer poético, a poiesis de Marinho é

“Linha reta
questão de técnica
rabisco tempestades”.
Poiesis(pág.77)


É linha reta pois o poeta segue em frente na vida escrevendo redemoinhos como se todas as vivências o levassem ao papel em branco (ou a tela com um editor de texto exibindo uma página vazia ainda não salva, o Documento 1). A técnica de Samuel Marinho o confere uma voz modulada de timbre único, uma voz inconfundível, busca maior de todo poeta. Mas o que ele escreve, rabisca, é tempestade. É vento forte que bate por dentro e por fora. É visão de raios que partem vidas, e o poeta sente a vida no seu interior e ao redor, se importa com toda vida e constrói uma ode às vidas que passaram por ele.

Chama a atenção a série de poemas “a casa de...” quase sempre completada com nome de mulheres que tiveram presença vital desde a infância, como “A casa de maria da graça” (pág. 86), uma mulher de 80 anos, sua mãe, com

“a imunidade já muito baixa
e um olhar imenso
daqueles
de dizer o mundo”.

Olhos não veem, dizem! Basta o olhar imenso para dizer as coisas do mundo, não importa o tempo passado, ou, talvez, justamente pelo tempo vivido. O Tempo que volta a ser criança na “casa de camélia”, onde o encantamento com as nuvens nos olhos da viúva de 93 anos se transforma em esperança de viver para sempre, sonho infantil remasterizado.

Mas também adentramos na “casa de manuel de barros” (pág.78),

“naquele estado fascinante de pré-coisas”,

partilhamos “o sonho de krenak” (pág.80) onde

“somos muitos
e juntos
imensos

basta nos
reconhecermos” .


O poeta maranhense Samuel Marinho figura hoje entre umas das vozes mais potentes da poesia brasileira. E esse seu novo livro aprofunda as experiências que legaram lavra valiosa da nossa literatura que nos ajuda a ver a vida com outros olhos, nos ajuda a entender que

“o caminho das nuvens
é o lugar de todos
os subterfúgios
as vezes me alegro
as vezes me afundo”


Nesse choque de realidade poetizada, que é a maior das ampliações, nesse livro das nuvens, encontramos

“imagens
para reencantamento
do mundo”.
Localização da cidade azulejada (pág. 69)
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