
Os haicais são, hoje, parte importante da poesia brasileira, que acolhe as diversas influências na construção dos polifônicos matizes poéticos do país. Não haveria de ser diferente com a herança japonesa, cuja poesia desembarca no Porto de Santos no Kasato-Maru, em 18 de junho de 1908, junto aos primeiros imigrantes.
Como em todo lugar, a arte poética vem de antes da escrita, ela vem da tradição oral e, no Japão, podemos citar loas ao imperador, toadas ritmadas para marcar o trabalho, concursos de repentistas indo até tradições orais pré-históricas (1). A poesia nasce com a língua falada em qualquer canto. Depois ela é transportada para a escrita, ganha representação que será definitiva: o poema. No caso nipônico, o waka (“poema japonês”).
As possíveis formas do waka são o chôka (“poema longo”) e o tanka (“poema curto”). O tanka é a forma mais comum da poesia japonesa sendo composto por 5 versos com 31 sílabas poéticas dividas nos versos com 5, 7, 5, 7, 7 sílabas. Vale destacar que a métrica japonesa não é a mesma métrica de línguas ocidentais. Por exemplo, no português contamos até a última sílaba tônica da palavra, enquanto o mesmo não ocorre com o japonês que conta todas as sílabas. Na escrita japonesa fica ainda mais difícil por conta dos ideogramas. Vale destacar que não há rima na poesia japonesa, devido à baixa ocorrência de vogais na língua, porém, percebe-se, pela rígida métrica poética, um ritmo próprio.
Entre 790 e 1200 (era Heian) surgiu uma composição, o renga, que possui 36 estrofes sendo a parte inicial uma forma rígida (o hokku) composta de 17 sílabas divididas em três versos com 5, 7, 5 sílabas. Com o tempo, essa forma ganhou independência e passou a ser chamada de haicai sendo o poeta Matsuo Bashô (1644–1694) sua grande referência, que levou o haicai a ganhar a estatura de forma artística independente. No Brasil, essa forma, para além dos imigrantes, teve como seu maior difusor o poeta paranaense Paulo Leminski, grande admirador de Bashô.
Hoje há diversos adeptos desta forma de expressão poética, entre eles, a escritora e poeta Márcia Pessanha que, recentemente, publicou “Viagem ao encantador universo dos haicais” (2). Autodidata na técnica, executa com precisão cirúrgica a composição. Escritora de grande sensibilidade, consegue colocar na forma diminuta grandes pensamentos e emoções.
A autora separa seus haicais por sequências temáticas. Com isso, fica evidente sua fidelidade à cultura haicaísta nipônica de abordar a natureza, seja na sequência inicial, “Iniciando no campo”, seja na penúltima, “Para não dizer que não falei das flores”, e na última sequência, “As estações do ano”. Por outro lado, é possível identificar uma “reimaginação”, como sugeriu Haroldo de Campos para a traduções de haicais, de forma a criar imagens poéticas na língua-cultura de chegada. Márcia, porém, não está a traduzir, mas a criar nesta forma estrangeira uma poesia brasileira de grande expressão. Faz nascer a visão brasileira de “lembranças atávicas”, da infância, de datas como o dia das mães, festas juninas e de fim de ano. Tudo isso com a sensibilidade e o rigor estilístico que lhe são peculiares.
A reflexão e função social tão marcante na poesia brasileira estão presentes na obra que dialoga com a tradição poética nacional, hora com Jorge de Lima
Lampiões acesos.
Acendedor, triste, volta
à casa, sem luz.
(pág.85)
hora com Solano Trindade,
Olhos mastigam,
em visões, os alimentos:
crianças com fome.
(pág.84)
Não deixa de refletir sobre o próprio fazer poético
Esperança foge
Da solidão do poeta
nasce no poema.
(pág.74)
O livro é prefaciado pelo poeta e também haicaísta, Paulo Roberto Cecchetti, Presidente da Academia Niteroiense de Letras. A edição caprichada da Editora Parthenon com ilustrações de flores e paisagens formam um painel muito propício à nossa entrega à leitura que apraze os olhos e a alma. Tanto é que não conseguimos parar a leitura enquanto não lemos o último verso.
Sobre a autora: Márcia Pessanha é Doutora em Letras, escritora, poeta, Presidente da Academia Fluminense de Letras.
(1) CUNHA, Andrei. “A poesia japonesa no Brasil” Japan Foundation – São Paulo - https://fjsp.org.br/
(2) PESSANHA, Márcia. “Viagem ao encantador universo dos haicais”, Editora Parthenon, Niterói-RJ, 2025.